No capítulo doze de “Confissões”, de Santo Agostinho, ele conta um dia em que estava muito agitado em seu jardim, em um estado de turbulência pessoal. Ele se recorda de ouvir a voz de uma criança dizer a ele: “pegue e a leia”. Ele pegou uma Bíblia e leu uma passagem do Novo Testamento e experimentou uma calma interior e aprofundou sua decisão de se dedicar a Deus. Quando retomar esta encíclica, exorto-o não apenas a “lê-la”, mas a “orá-la”. Nas linhas iniciais de Fratelli tutti, o Papa Francisco cita seu patrono, que se dirigindo aos seguidores, “propôs a eles um modo de vida marcado pelo sabor do Evangelho”. Atrevo-me a dizer que é simples assim. Mas também é extremamente difícil.
Um modo de vida
A Fratelli tutti não se trata de fazer ajustes aqui e ali em nossas vidas pessoais e comunitárias. Pelo contrário, é nada menos do que uma maneira de reler e viver o Evangelho para nossos tempos. O que o Papa escreve é algo necessário para que sobrevivamos não apenas à pandemia do coronavírus (que é moderadamente mencionada em um tratado muito mais amplo do que este vírus mortal), mas para o mundo contemporâneo sobreviver. É tão sério. É tão atraente. É tão exigente.
O Santo Padre a chama de sua segunda “encíclica social”. O Pontífice quer nos oferecer “uma nova visão de fraternidade e amizade social que não ficará no nível das palavras”. No jargão de hoje, Francisco quer que “sigamos o caminho”, não apenas “falemos por falar”. É uma cartilha sobre a maneira cristã católica de ver a vida e viver a vida em diálogo entre todas as pessoas de boa vontade.
Um documento Quintessencial do Papa Francisco
O Papa Francisco dedica Fratelli tutti ao seu homônimo, Francisco de Assis, túmulo no qual celebrou a missa à véspera da data de sua publicação, durante a festa de São Francisco. O “lançamento” da encíclica pelo Vaticano deu-se ao meio-dia da própria festa e foi marcada por um encontro anterior com o secretário de Estado do Vaticano, o cardeal Pietro Parolin, e o líder muçulmano de uma comissão conjunta criada após a visita do Papa Francisco a Abu-Dhabi, em fevereiro de 2019. Nas palavras do próprio Vaticano, foi algo muito importante.
A encíclica Laudato Si de Francisco também foi inspirada em São Francisco. Lá, o Papa reconhece a influência do Patriarca Bartolomeu em seu pensamento sobre o cuidado com a criação. Em Fratelli tutti, o Sucessor de Pedro reconhece a influência do Grande Imam Ahmad Al-Tayyeb em sua viagem a Abu Dabi. O que os Papas dizem e fazem nas viagens, assim como os próprios destinos, revelam muitas coisas. O mesmo se aplica à viagem de Francisco a uma nação predominantemente muçulmana.
Esta encíclica é um convite a todos nós a ampliarmos nossa perspectiva para ver um “mundo sem fronteiras” (nn. 3-8) e a enxergar cada pessoa do planeta, e mesmo o próprio planeta, como irmão e irmã. Em particular, Francisco pleiteia em nome dos pobres do mundo à margem da sociedade, bem como dos deficientes, dos enfermos e dos idosos que muitas vezes vivem às periferias, mas que deveriam estar no centro.
Conversão da vida
Fratelli tutti é um documento completo escrito como se fosse um convite. No entanto, esteja preparado para um convite incessante para nada menos do que uma conversão de vida à luz da avaliação astuta de Francisco acerca da fragmentação e polarização do mundo contemporâneo. Isto inclui o escândalo do individualismo pessoal e institucional galopante e a necessidade de as entidades religiosas se reunirem em “fraternidade e amizade social” para testemunhar contra os valores culturais perante o mundo. A característica e o desafio católicos — o bem comum — são citados e explorados aqui de inúmeras maneiras.
Continuidade e contribuições
Como em quase todas as encíclicas, Fratelli tutti foi exaustivamente pesquisada e documentada. O Papa Francisco cita seus predecessores imediatos no papado por seus ensinamentos acerca de diversos assuntos, incluindo aí economia e a pena de morte. Esses são lembretes não tão sutis de que ele não inventou essas posições católicas. Ele as herdou e aplicou aos dias de hoje. Outras fontes citadas variam de autores latinos do mundo antigo a filósofos contemporâneos, de romancistas a dramaturgos!
Onde estamos e quem somos?
O primeiro capítulo da encíclica é uma “leitura” extremamente perspicaz sobre nossa situação no mundo. Tipifica o método “ver, julgar, agir” que o Santo Padre empregou em vários documentos. Alerta de spoiler: não se trata de uma leitura fácil. É como um diagnóstico médico preciso, que leva ao tratamento e o mais próximo da cura que nós, irmãos e irmãs, podemos chegar.
Duas lentes no mundo
Laudato Si ’e Fratelli tutti não são encíclicas papais típicas. Ambos são dirigidas a homens e mulheres de todas as religiões e lugares, não apenas aos católicos ou à hierarquia. Oferecem uma maneira de ver o nosso mundo e para a própria vida. Não se tratam de ajustes teológicos internos. Essas encíclicas servem como lentes através das quais olhamos para tudo — sim, tudo. Os óculos não são de forma alguma cor-de-rosa. Mas ambas são tingidas com a virtude da esperança, tão precisas e necessárias agora.
Contracultural
Nas primeiras semanas, quando o coronavírus foi descoberto em uma população mundial desavisada, um líder político disse: “Estamos nisto juntos”. Esta frase poderia muito bem ser um subtítulo adicional a este texto. “Estamos juntos nisso” significa nos elevarmos para sermos o nosso melhor e sermos “o bom samaritano” uns para os outros. Muitos aceitaram este pensamento e o desafio. Muitos se ressentiram, defendendo-se com os pronomes “eu”, “mim” e “meu”. A Fratelli tutti é sobre pronomes no plural: “nós” e “nosso”. Estamos nisto juntos, todos em nossa casa comum.
A Fratelli tutti é uma encíclica profunda que pode mudar mentes e corações. Pode ser uma maneira de fazer nada menos do que “renovar a face da terra”. Pegue-a e ore.
Fonte: portal cancaonova.com